A falácia da Neuromania: sua mente não é o seu cérebro
E o design não deve ser neurocêntrico!
Como trend analyst, vejo uma obsessão perigosa moldando nossos espaços - e preciso falar sobre isso. Urgente.
Vivemos uma era de fetichismo cerebral com a ascensão das “neuro alguma coisa” no que é apenas um sintoma de algo maior: uma cultura que acredita poder traduzir complexidades humanas em mapas cerebrais coloridos.
Designers, arquitetos e gestores passaram a justificar decisões estéticas ou espaciais com frases como “o cérebro prefere curvas” ou “esta cor ativa o sistema de recompensa”, como se o cérebro fosse um oráculo absoluto mas no entanto, essa neurofilia pouco crítica empobrece o debate sobre a experiência humana nos espaços.
O problema? Ao reduzir percepção, memória afetiva e sentido estético a impulsos neuronais, esquecemos que viver (e habitar) vai além do que pode ser escaneado…
Essa tendência tem nome: Neuromania e eu a descobri lendo o livro homônimo, dos italianos Paolo Legrenzi e Carlo Umiltà que desmontam com elegância essa crença de que basta olhar para o cérebro funcionando para entender a mente.
Eles mostram como o uso descontextualizado de imagens de ressonância magnética ganhou um estatuto quase religioso, sendo usado até para legitimar políticas públicas e estratégias de mercado e a crítica dos autores serve como um alerta necessário ao design contemporâneo: o cérebro é parte da equação, mas não é o todo.
A mente não é redutível ao seu substrato físico — assim como a experiência estética não se explica apenas com dopamina.
Por isso, meu chamado inicia aqui: é preciso retomar a complexidade - o espaço vivido não é uma máquina de estimular neurotransmissores, mas um campo simbólico, cultural, emocional e histórico.
Substituir a sensibilidade projetual por gráficos cerebrais é ceder à ilusão de objetividade total e por isso ao invés de buscar respostas fáceis no neurojargão, talvez devêssemos revisitar o corpo, a memória, a fenomenologia e as artes como lentes mais potentes para pensar o habitar.
Porque a nossa criação projetual como designers e arquitetos não é neurologia aplicada — é criação de sentido.
Tem coragem de explorar este tema juntas? Vem comigo ;)
A leitura de Neuromania despertou em mim um alerta… e como alguém que analisa tendências há anos, sim, posso afirmar junto dos autores: estamos vivendo uma neuromania coletiva onde tudo seria explicável pelo nosso cérebro. Por que gostamos de gordura? Cérebro. Por que consultamos Instagram compulsivamente? Cérebro. Por que permanecemos indolentes diante da crise climática? Massa cinzenta, sempre ela.
Você, que também acompanha mídia científica deve ter notado essa obsessão: cada post no feed promete revelar "como o cérebro explica" algum aspecto da condição humana, como se fôssemos apenas fantasmas pilotando 1,3 kg de massa cerebral encapsulada no crânio.
Ecco, aqui está o problema que me preocupa como trend analyst: essa neuromania não está apenas distorcendo nossa compreensão da experiência humana, ela está fundamentalmente moldando mal como projetamos espaços, cidades e ambientes construídos. E eu preciso falar sobre isso para vocè, que mergulha na profundidade das coisas, como eu.
As ilusões perigosas da Neurociência midiática
Estudando tendências desde 1999, aprendi que todo hype segue padrões previsíveis e aqui a neurociência — nossa queridinha contemporânea —começa a declinar (principalmente aqui na Europa, que aliás nem chegou chegando e já foi!) como matriz absoluta de nossos processos de consumo e projeto…
Nada de novo, já vimos esse ciclo antes. Lembra da frenologia?
No século XIX, a frenologia dividia o cérebro em áreas específicas, cada uma associada a uma característica moral ou intelectual e achava-se que, ao tatear o crânio de alguém, era possível mapear seu caráter. Sério. Isso foi considerado ciência das boas por décadas e políticos, educadores e até arquitetos usavam esse “conhecimento” para justificar decisões.
Felizmente a frenologia hoje é classificada como pseudociência pois sabemos que o cérebro não é um conjunto de compartimentos, mas uma rede dinâmica e distribuída, em constante diálogo com o corpo e o ambiente.
Repito: diálogo com o corpo e o ambiente, como já disse o biólogo, filósofo, neurocientista e expert em epistemologia Francisco Varela:
"A mente não está na cabeça. Ela está nos padrões dinâmicos de interação entre o organismo e o ambiente."
Mas mesmo assim, muitas ilusões permanecem. E, claro, muita gente aì fora tentando nos iludir vendendo este tipo de informação - até sem ser neuro/cientista, o que eu acho duvidoso. Você, não?
Durante anos, vimos se concretizar uma espécie de materialismo neurológico como verdade absoluta: a ideia de que tudo que somos é resultado das sinapses e da química cerebral. Que a mente "acontece no cérebro", e só, mas analisando tendências em design principalmente no foco wellness (bem-estar), percebi que essa visão se tornou uma camisa de força intelectual.
Acordemos! A experiência humana não acontece apenas dentro da cabeça - ela emerge de uma dança entre corpo, mente, memória, emoção, espaço e cultura. Somos mais ecossistema do que máquina, como disse o médico neurologista, neurocientista português que trabalha no estudo do cérebro e das emoções humanas Antonio Damasio. Aliàs, ele sim, professor de neurociência na Universidade do Sul da Califórnia disse que:
"A mente é incorporada, não apenas encefálica."
Acho lindo esse pensamento (aliás qualquer livro de Damasio eu te recomendo!) pois ele está nos tirando de um dos delírios mais perigosos da modernidade: a ideia de que tudo acontece no cérebro, como se fôssemos uma espécie de “piloto fantasma” trancado dentro do crânio, guiando o corpo à distância. Se a mente é incorporada, então cada gesto, cada sensação tátil, cada cheiro, cada mudança de temperatura, cada som ambiente — tudo isso participa ativamente da consciência. Não somos só sinapses: somos pele, pulmão, ritmo, memória sensorial, cultura.
O corpo não é um “suporte” para o cérebro. Ele é o cenário inteiro onde a mente acontece.
É por isso que, quando vejo um designer ou arquiteto projetando elementos do mundo baseado apenas em "como o cérebro processa informação", reconheço um erro profundo pois ele está ignorando a complexidade da percepção encarnada: o modo como sentimos com o corpo, associamos com afetos, ativamos memórias culturais, e respondemos a estímulos de forma contextual e viva.
O design que reduz tudo à atividade cerebral está olhando só para um pixel de uma imagem muito mais rica.
Como trend analyst, vejo que isso não é discussão acadêmica abstrata: a neuromania tem consequências políticas e sociais profundas porque quando explicamos comportamentos complexos apenas através do cérebro, transferimos responsabilidade para o indivíduo, ignorando estruturas que moldam experiências.
No design, isso vira soluções superficiais: "vamos pintar de azul porque ativa área cerebral da calma" em vez de questionar por que pessoas estão estressadas.
E, será que o problema é cor ou são 10 horas diárias em espaços mal ventilados, com ruído constante, sem natureza? E comendo ultraprocessado direto, diria minha amiga nutricionista…
Voilà, aí está a falácia que identifico em tantos projetos contemporâneos: pois quando você se sente tranquilo em jardim japonês, essa experiência não "acontece" só no córtex - emerge da interação entre postura corporal, ritmo respiratório, textura da pedra, som da água, e sim, também atividade neural.
Ecco , aqui chegamos ao ponto que me fascina como trend analyst: o corpo é nossa primeira arquitetura, ou seja, não é recipiente para cérebro, mas sistema ativo de conhecimento que molda cada experiência.
Quando analiso projetos pensados apenas em estímulos visuais para cérebro - cores que "ativam" áreas neurais, formas que geram respostas cognitivas - vejo que ignoram algo fundamental: experiência espacial é corporal.
O poder da mente está intrinsecamente vinculado ao do corpo.
E esta integração entre mente e corpo representa um dos fenômenos mais fundamentais da experiência humana, sustentada por décadas de pesquisa em cognição corporificada.
Tenho lido isso nos meus estudos deste ano sobre processos cognitivos corporais dentro da investigação sobre consciência (logo mais vou estar postando aqui o que tenho encontrado e è relevante para o Design e Arquitetura) e penso que essa integração revela-se como um dos fenômenos mais fundamentais da experiência humana, sustentada por décadas de pesquisa em cognição corporificada.
Como diz o neurocientista Anil Seth, “a experiência consciente não é algo que acontece em nós, é algo que fazemos — ativamente, corporalmente, em constante negociação com o mundo ao redor.”
Essa visão desloca o foco do cérebro isolado para um organismo sensível em relação contínua com o ambiente e aqui, uma escada não é apenas estímulo visual processado pelo córtex - é affordance (Gibson) que convida movimento, promessa de elevação que seu corpo compreende antes da consciência, no que chamamos de uma experiência proprioceptiva que modula estado emocional através da postura…
A propriocepção ou experiência proprioceptiva é a capacidade que o próprio corpo tem de avaliar em que posição se encontra a fim de manter o equilíbrio quando está parado, em movimento ou ao realizar esforços.
Por isso que acredito que a "neuroarquitetura" - que promete projetos baseados em "evidências neurocientíficas" - comete um erro que identifico em muitas tendências superficiais: trata o cérebro como computador processando inputs arquitetônicos, ignorando algumas coisas fundamentais, como por exemplo:
Que o contexto cultural redefine a resposta neural: aqui o mesmo espaço escandinavo urbano "minimalista" relaxa ou oprime alguém criado em ambientes visualmente ricos. Jà percebeu?
Nossa história pessoal modula percepção espacial: Nossos traumas, memórias afetivas, experiências incorporadas alteram radicalmente como vivenciamos ambiente.
Os estados corporais influenciam a cognição espacial: Fome, cansaço, excitação, ciclos hormonais - tudo muda como percebemos espaços.
E assim eu proponho uma mudança paradigmática: parar de perguntar "como cérebro responde ao espaço" e começar "como corpo-mente-ambiente co-criam experiência".
Não é questão filosófica abstrata, ela tem implicações práticas que vejo emergindo em projetos diários e eu diria que podemos pensar em projetar para corpos em movimento considerando os ritmos temporais - como espaços mudam ao longo do dia, estações, anos e por fim incorporando variabilidade e adaptabilidade em vez de buscar respostas universais…
Por isso vale a pena pensar em qualidades atmosféricas - temperatura, umidade, fluxo de ar como design ativo, ativando múltiplos sentidos simultaneamente (não hierarquias visuais) sempre lembrando de considerar diferentes estados corporais - espaços que funcionam para energizar e acalmar…
Por um projeto pós-neurocêntrico
No ar, sinto o deslocamento de um paradigma como quando a física quântica revelou que observador e observado são inseparáveis, agora também estamos começando a entender que experienciador, corpo e ambiente formam um só campo, um fenômeno emergente. Não há separação nítida entre o que se sente e onde se sente.
Esse nosso mundo vivido não é cenário — é coautor da experiência.
Por isso a minha sugestão, então, é direta: pare de buscar uma fórmula neurocientífica universal para o “bom design” — ela não existe. Porque a experiência humana não é algoritmizável, nem redutível a mapas cerebrais e ela nasce de três raízes entrelaçadas: contexto, corpo e relação.
Oras, você não projeta para cérebros isolados — projeta para seres humanos integrais, cujas mentes emergem da dança entre fisiologia, memória, cultura, tempo, espaço e afeto.
E por isso a era da neuromania, como bem anteciparam Legrenzi e Umiltà, està exausta - como toda moda intelectual, ela passa — mas as perguntas que nos deixou permanecem.
Como o ambiente molda a consciência?
Como a subjetividade se inscreve no espaço físico?
O que significa experienciar, de fato, um lugar?
A tarefa agora é mais sofisticada: não é rejeitar a neurociência, mas colocá-la em seu devido lugar, dentro de uma ciência da experiência tão rica quanto a própria experiência humana.
Ou como disse Alvar Aalto — um dos primeiros a projetar a partir do corpo e da emoção —, “a arquitetura deve crescer organicamente do solo e da vida das pessoas.” E esse é o convite: não projetar para cérebros, mas para mundos vividos.
Sair da cabeça, reencantar o corpo, escutar o chão, recolocando o humano inteiro no centro do projeto.
Porque no fim das contas, não habitamos nossos cérebros, habitamos o mundo. E é esse mundo — relacional, simbólico, corporal e afetivo — que devemos aprender a sustentar.
Como trend analyst, continuo observando essas mudanças. Qual tem sido sua experiência com abordagens "neurocientíficas" no design? Como você equilibra evidências científicas com intuição experiencial? Vamos continuar essa conversa necessária sobre o futuro do design centrado no humano por aqui. Ti aspetto!
A incrivel capacidade que a Fah tem de criticar com elegância . Ler nossa mente cansada de trends mas que nao sabemos traduzir. Grazie!
Interessante. Acredito que tudo isso
é fruto da famigerada imagem, a qual somos bombardeados a todo segundo. Resumimos as nossas experiências e sensações com base no que vemos e deixamos de enxergar. Supervalorizamos a mente e pouco nos importamos com alma, projetamos casas, e esquecemos que se tornaram lares.