Colonialismo do olhar: por que copiamos Tendências?
Importar o Salone sem tropicalizar não funciona mais
Existe no Sul Global uma espécie de complexo de inferioridade herdado, colonizado, repetido que impede de confiar na própria sensibilidade e, pior: ensina a copiar em vez de traduzir. A repetir em vez de escutar. A decorar em vez de decodificar.
Por isso, este post é um ensaio preparatório: antes de escrever sobre o que, de fato, fica do Salone e do Fuorisalone para quem trabalha com realidades tropicais, periféricas e latino-americanas, quero deixar aqui uma reflexão e 7 leituras fundamentais para curar o olhar, descolonizar os filtros e nos permitir ver com os nossos próprios olhos.
Porque só depois de uma faxina simbólica no olhar, poderemos traduzir tendências.
Quero fazer uma confissão antes de mais nada: quando decidi vir estudar em Milão em 2008, eu queria compreender de perto o que fazia o “design italiano” ser um mito global. Eu não era ingênua — sabia que por trás do sucesso havia indústria, marketing, história, mas também intuição e sensibilidade estética e vim porque achei que aprender aqui era necessário. E de certo modo foi.
Mas algo me acompanhava desde os primeiros dias: um sentimento de tempo contado.
Eu precisei vir - como estão fazendo muitos designers hoje - pois è uma espécie de rito de passagem profissional, uma iniciação desejada por quem vem da periferia do mundo — no caso, do Brasil. Mas algo me incomodava…
Apesar de toda a elegância e tradição, percebia, jà como trend analyst, que o tempo aqui era outro: mais fixo, mais controlado, menos poroso e o frescor que eu já encontrava no Brasil — convivendo com mestres como Sérgio Rodrigues, os Irmãos Campana e uma geração de criadores desobedientes — parecia ausente, como se a criação já tivesse sido capturada por um sistema industrial, repetitivo, institucional.
Eu via no Brasil uma vibração que aqui, na capital do design mundial, já começava a parecer embalsamada.
Claro, isso não era algo fácil de dizer. E, sinceramente, até hoje não é. Poucos do sul global gostam de escutar ISSO.
E eu sei porque, pois já senti isso na minha pele: existe uma espécie de síndrome (criei o acrônimo SSEC para ela, risos), que impede de criticar o que vem de fora. Eu desde pequena interiorizei que o olhar europeu é superior, e pratiquei esse mantra até na estética: no gosto, nas formas, nas cores e até nos meus silêncios.
A Síndrome da Submissão Estética Crônica (SSEC) fala sobre a ideia de que o belo, o inovador e o sofisticado só existem fora do nosso país (seja ele em qualquer parte do sul global). Ela se manifesta em comportamentos de constante comparação, cópia e busca por validação estrangeira, mesmo quando o repertório local já pulsa com força própria.
E foi só com o tempo e um olhar bem ácido — e com muitos salones, fashion weeks e fuorisalones nas costas — que comecei a entender que o incômodo que eu sentia era legítimo. E que, mais que uma intuição, ele estava sendo estudado e escrito por filósofos, antropólogos e designers europeus. Sim, os próprios.
Antes de vir para cá fiquemos com o nosso caro antropólogo Roberto DaMatta, que em sua clássica análise da sociedade brasileira, falava sobre os "complexos de vira-lata" e a tensão entre a casa e a rua, entre o local e o estrangeiro, entre o informal e o formal, apontando que, historicamente, o Brasil oscilou entre o orgulho de sua identidade popular e a vergonha de não corresponder aos modelos europeus.
Essa ambivalência cultural ainda está presente nos modos como consumimos tendências, como construímos status simbólico e, sobretudo, como desenhamos o que achamos que o mundo quer ver — mesmo que isso signifique apagar o que somos.
A SSEC, portanto, não é apenas uma questão de gosto, mas de sintomas coloniais não tratados, oras!!! Ela compromete a liberdade criativa, distorce a percepção do próprio valor e impede a construção de uma estética verdadeiramente autêntica.
Por isso, precisamos de um tratamento cultural e epistemológico — que passa por devolver valor às epistemologias do Sul, resgatar a pluralidade de referências e curar, com afeto e coragem, essa ferida de origem.
Uma curiosidade: o período africano de Picasso (1907–1909), cujo marco inicial é o célebre quadro Les demoiselles d’Avignon, foi fundamental para o surgimento do cubismo sabia? Ele viu nas máscaras e estátuas africanas um poder emocional e uma liberdade formal que desafiavam o realismo burguês dominante. Para ele, a arte não deveria imitar a realidade, mas criar novas formas — algo que, segundo suas próprias palavras, os escultores africanos sempre souberam fazer!
Outros “eurocêntricos” acusaram esta disfunção em muitas análises - lendo Pierre Bourdieu, por exemplo, que já dizia que o gosto não é natural — entendemos que ele é uma construção social. Ou seja, o que é considerado “sofisticado” em Milão ou Paris é, na verdade, uma marca de classe.
Quando exportamos isso para o Brasil como um modelo a ser seguido, estamos, na prática, importando uma hierarquia simbólica — e nos colocando automaticamente na base dela.
E quem diria, o próprio Michel Foucault explicaria isso como um regime de verdade: quando certos padrões estéticos se tornam “a norma” simplesmente porque são repetidos por quem tem voz. Poder, ele quis dizer.
Escolas, bienais, Salones, festivais de cinema— todos falam a mesma língua. E o que não se encaixa vira “exótico”, “artesanal”, “alternativo”. Te lembra alguma coisa…?
Mas talvez quem melhor tenha me ajudado a decifrar o meu desconforto tenha sido Tim Ingold, com sua ideia de seguir “as linhas da vida”, também me tocou profundamente: o design, para ele, não deveria ser uma forma imposta de fora, mas algo que emerge do território, do clima, das práticas locais.
Ora, se o Brasil pulsa uma energia solar, abundante, múltipla e intuitiva — por que insistimos em vestir uma estética nórdica que nos cai como um casaco de inverno em plena floresta tropical?
Esse mundo novo não é feito de um só caminho evolutivo. Existem múltiplos mundos possíveis — e o Sul Global tem muito a ensinar!
Quando olho para os salones e fuorisalones hoje — com seus objetos impecáveis, suas instalações calculadas e seus discursos milimetricamente preparados —, percebo que muita coisa ainda gira em torno da manutenção desse olhar colonial. Sim, existem exceções.
Sim, há frescor em certos lugares, vozes novas, outras intenções.
Mas…a estrutura continua. E ela está na sua cabeça.
E o Brasil, muitas vezes, continua vindo aqui em busca de validação, como quem pede bênção a um oráculo que já perdeu sua escuta… Acho que chega, no?
O segredo? Mais do que um novo produto, o que você precisa criar é um novo posicionamento.
Uma nova maneira de olhar para o Brasil — e de parar de pedir desculpas por vocês serem originais demais!
Por isso, no próximo post da semana que vem, te conto o que vi de potente (e também de esgotado) no último Salone e Fuorisalone. E o que ainda vale a pena importar — mas com consciência, filtro e, sobretudo, com raízes profundas no seu chão.
E para terminar, uma injeção de otimismo…
Falei de Antonio da Matta que eu li quando estava no Brasil mas não posso esquecer de citar o grandioso Darcy Ribeiro, que enxergava o Brasil não como um país incompleto, mas como uma nova civilização em gestação.
Em obras como O Povo Brasileiro, ele rompeu com a narrativa de inferioridade ao afirmar que somos o resultado de uma mistura inédita de matrizes indígenas, africanas e europeias — uma antropofagia cultural que, longe de ser defeito, é potência.
Essa visão é um antídoto direto contra a ideia de que o que vem de fora é sempre melhor. Para ele, o Brasil é “o mais moderno dos povos novos”.
A minha SSEC — síndrome da submissão estética crônica — encontra nas ideias de Darcy uma confrontação frontal! Porque enquanto o complexo de vira-lata busca copiar modelos prontos, Darcy nos lembra que nossa originalidade está justamente em não termos um modelo fixo.
Nosso "caos criativo", nossa estética do improviso, da gambiarra, da abundância, da sensualidade, do barroco tropical, são linguagens legítimas de civilização.
E deveriam ser, como ele defendeu, formas de criar mundo — não de pedir licença a ele!!!
É como se, ao frequentar salões e feiras europeias, ainda nos vestíssemos de europeus imaginários — negando a potência do que já somos. Darcy diria que essa negação é um tipo de autoextermínio cultural!
Mas também nos daria esperança: porque, para ele, o Brasil é um projeto inacabado e por isso mesmo revolucionário.
Cabe a nós, designers, arquitetas e criadoras do futuro, assumir esse inacabamento não como vergonha, mas como chance de inaugurar uma nova estética planetária — tropical, decolonial e irresistivelmente brasileira.
Aceita o desafio? Semana que vem, assinando Odisseia, vamos continuar esta pesquisa.
Já assinou? Assina aì e pega as minhas 7 dicas de leituras para descolonizar seu olhar para o Design e Arquitetura:
"O Povo Brasileiro" – Darcy Ribeiro
Uma leitura-chave para entender o Brasil como uma civilização em formação e não como projeto falido. Uma injeção de orgulho e complexidade nas veias criativas."Estética da Ginga" – Hermano Vianna
Uma reflexão sobre o valor cultural do improviso, da criatividade marginal e da inteligência estética brasileira."Colonialidade do Saber, do Ser e do Poder" – Aníbal Quijano
Uma introdução ao conceito de colonialidade, fundamental para quem quer entender o apagamento de outras epistemologias na criação e no pensamento de design."A Queda do Céu" – Davi Kopenawa e Bruce Albert
A visão cosmopolítica Yanomami sobre mundo, tempo, vida e criação. Um verdadeiro manifesto sobre outras formas de habitar o planeta."A Invenção do Cotidiano" – Michel de Certeau
Um europeu necessário: mostra como os pequenos gestos cotidianos são, na verdade, estratégias de resistência e invenção."Pedagogia do Oprimido" – Paulo Freire
Porque aprender a escutar e traduzir o mundo também é um ato pedagógico. Freire nos ensina como a leitura de mundo é anterior à leitura da palavra — inclusive no design."Design Decolonial: Moda, Educação e Futuro" – Giovana Zucchi & Priscila Souza
Uma abordagem brasileira e atual sobre como as práticas de design (e de ensino de design) podem ser redesenhadas a partir de epistemologias plurais.



Fah, adorei o texto — e principalmente o convite à reflexão. É um tema importante, que precisa mesmo ser discutido com mais profundidade e urgência. Mas, sendo muito sincera, alguns pontos me provocaram outro tipo de inquietação.
Acredito que já passamos da fase de buscar culpados ou reduzir a potência do design brasileiro à ausência de uma estética “nossa”. Tenho a impressão de que esse tipo de abordagem, embora necessária em determinado momento, hoje corre o risco de nos manter presos ao lugar da queixa ou da comparação. Enquanto isso, o mundo evolui — e o nosso olhar precisa acompanhar.
O desafio, para mim, não está apenas em “deixar de copiar”, mas em desenvolver repertório, pensamento crítico e ambição intelectual. A criação autêntica exige mais do que referências locais — exige consistência, risco, refinamento e um entendimento profundo de onde queremos estar no jogo global.
O exemplo da moda brasileira me parece simbólico: um setor criativo, com identidade e protagonismo cultural, que perdeu relevância internacional por falta de articulação estratégica. Corremos o mesmo risco no design. Nossa exportação de mobiliário, que já é baixa, segue caindo — não somente por falta de identidade visual, mas por ausência de visão de longo prazo e coragem para assumir uma posição de excelência.
Seguimos juntas nesse caminho de pensar e repensar — com afeto, escuta e muita vontade de ver o design brasileiro onde ele merece estar.
Fah, adorei o texto — e principalmente o convite à reflexão. É um tema importante, que precisa mesmo ser discutido com mais profundidade e urgência. Mas, sendo muito sincera, alguns pontos me provocaram outro tipo de inquietação.
Acredito que já passamos da fase de buscar culpados ou reduzir a potência do design brasileiro à ausência de uma estética “nossa”. Tenho a impressão de que esse tipo de abordagem, embora necessária em determinado momento, hoje corre o risco de nos manter presos ao lugar da queixa ou da comparação. Enquanto isso, o mundo evolui — e o nosso olhar precisa acompanhar.
O desafio, para mim, não está apenas em “deixar de copiar”, mas em desenvolver repertório, pensamento crítico e ambição intelectual. A criação autêntica exige mais do que referências locais — exige consistência, risco, refinamento e um entendimento profundo de onde queremos estar no jogo global.
O exemplo da moda brasileira me parece simbólico: um setor criativo, com identidade e protagonismo cultural, que perdeu relevância internacional por falta de articulação estratégica. Corremos o mesmo risco no design. Nossa exportação de mobiliário, que já é baixa, segue caindo — não somente por falta de identidade visual, mas por ausência de visão de longo prazo e coragem para assumir uma posição de excelência.
Seguimos juntas nesse caminho de pensar e repensar — com afeto, escuta e muita vontade de ver o design brasileiro onde ele merece estar.